terça-feira, 25 de agosto de 2009

A Poeira do Piano

Alle: Pensei bastante antes de postar isso aqui, porque não acho que tem muito a ver com o clima do blog. Ainda não sei se foi uma decisão acertada escrever esse post, mas aí vai:

No fundo, acho que minha mãe sempre sabe quando estou mentindo.



Enquanto apertava o interfone do portão milhões de vezes para que o porteiro acordasse e me deixasse entrar, respirava aquele ar da madrugada calmamente. O ar entrava em golfadas de perfume Nina Ricci e de clorofila nas minhas narinas. Meti a chave com cuidado na porta de casa.
Deitada no sofá, uma figura pequena envolta em um robe cereja Victoria’s Secret contrastando com seu cabelo cor de mel, me fitou. Sua idade era dedurada pelos olhos sábios mesmo que seu corpo se recusasse terminantemente a envelhecer. Me aproximei e, de forma automática e natural, deitei minha cabeça naquelas pernas pequenas.


Eu sei que como uma boa adolescente alcolizada eu devia ter corrido para o banheiro para tentar apagar os indícios de bebida, mas, naquele momento, tudo o que me importava era buscar conforto nos braços daquela mulher que, eu sei bem, é o retrato do que serei daqui a algumas décadas.


Já passamos por tanta coisa juntas. Nossas vidas já deram tantas reviravoltas que as vezes eu paro e tento lembrar quais foram as ocasiões que me trouxeram para onde eu estou agora.
Ela me irrita, não concordo com as idéias dela, espero sair logo de casa, reclamo dela para minhas amigas... mas ainda sim é a pessoa que eu mais amo nesse mundo. Viver sem minha mãe seria como viver sem uma parte do meu corpo.


Ela me pergunta sobre a noite e eu conto uma versão filtrada. Ela pergunta se eu bebi e eu minto. Eu conto o que acho seguro contar, sentindo que realmente estou ficando mais sóbria, apenas um enjôo que passaria logo.


Ela veio de uma cidade pequena, de uma família grande e conservadora. Casou com 20 anos e só chegou a realmente amadurecer no seu segundo marido.


Eu cresci numa família pequena e em diferentes cidades, exposta a temas e situações muito pesadas para uma criança. Minha adolescência foi marcada por uma ascenção social rápida que acabou me expondo a mais tentações do que o normal. Meu leite foi substituído por café puro. Minha coca-cola por um apple martini. Meus all star por scarpins desconfortáveis. Minha religião por uma filosofia mais aberta e permissiva.


Minha mãe continuou lá. Com seus valores intocados e sua mente formada. Como se enquanto eu estivesse sendo levada pela maré, uma parede de concreto surgisse no meio do mar, impedindo meu corpo de ir muito longe. A água me esmaga contra aquela parede, e, cheia de dor, eu imploro para que esse concreto suma, mesmo sabendo que é tudo o que me impede de me afogar.


Ela olha perdidamente para o teclado empoeirado no meio da sala. O mesmo que eu insisti para ter por tanto tempo e ficou intocado por ser meu ano de vestibular.


Pendurei meus sapatos em um dedo e fui andando para o banheiro, sentindo-me tonta e tola. Ela continuava olhando tristemente para o teclado.


Deixei os sapatos caírem com um estrondo no chão e fitei o teclado por 3 segundos antes de dar meia volta e caminhar até ele.


Minhas mãos roçaram pelas teclas brancas sentindo o pó acumulando-se nos meus dedos. Mamãe me olhava atentamente. Fechou os olhos quando comecei a tocar “O Bife”. Tocar é como andar de bicicleta. Por essa eu não esperava.


Fiquei olhando para minhas unhas azuis contrastando com as teclas e minhas roupas indo contra a música clássica. Quando a espiei pelo espelho, ela estava de olhos fechados, curtindo a melodia.
Ela sempre quis tocar, mas em sua vida nunca achou oportunidade ou tempo. Eu sempre quis tocar, e como quase tudo na vida envolvendo bens materiais, me foi entregue de bandeja a oportunidade. Ela parecia feliz com aquela pequena injustiça da vida, então eu não ousaria reclamar.


Meu estilo de vida pode ser diferente do que ela desejou pra mim, minhas escolhas e pensamentos podem ser o contrário do que ela um dia planejou e sonhou para sua caçula, minha visão fria e dura não era o que ela esperava de sua doce e pequena Alle que via o mundo por trás de um prisma de perfeição.


Ela pode me irritar com tantos moralismos fortes, pode me irritar por me pressionar tanto a ser uma boa pessoa, pode me irritar por me achar fraca, pode me irritar por achar que poderá me controlar pro resto da minha vida.


Mas enquanto eu tiver dedos, vou tocar piano para ela.
E enquanto ela tiver braços, vai me envolver com eles.
E enquanto eu tiver um coração, ele vai ter o rosto dela.


Minha mãe.
Minha melhor amiga.
Minha alma.


-Alle




-G

9 comentários:

  1. Aii, deu saudade da minha, vou chorar! ;~

    Obrigada pela visita, adorei seu blog!

    Beijos.
    Anita

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  2. Eu começei não gostando por conta das citações de marcas em demasia, cheguei ao meio já tecendo opinião sobre comflito de gerações e termino emocionado com a homenagem à mãe! Todas as emoções misturadas! rs

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  3. Uma das características desse blog é a adoração por marcas. A intenção do post era mostrar as superficialidades que acabaram tomando conta tanto da minha vida quanto da minha mãe. O contraste da nossa ascenção social com os valores que ela conserva e que me atormentam/salvam.

    Que bom que você gostou, Alan! Obrigada!

    Obrigada pelo comentário Anita, volte sempre! Seu blog é maravilhoso!

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  4. Você acabou de comentar no meu Blog sobre a Kate Winslet... escreveu tão bem que não resisti e tive que vir fazer uma visita.
    Eis que me surpreendo, com um texto forte, completamente marcado por características tão pessoais, numa narrativa impressionante e absolutamente agradável.

    Gostei do visual, do que li, do título. Confesso que me senti tentado a experimentar as gotas de veneno. Talvez poderia bebê-la junto com o apple martini, na sua companhia. Se puder, toque para mim.
    Tal como Ilsa, personagem de Ingrid Bergman em Casablanca, vou pedir para que você toque uma canção - As Time Goes By - mais uma vez.

    :)

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  5. Relações perfeitas entre mães e filhos só acontecem em filmes e novelas. O seu amo parece tão real e é muito mais interessante e bonito.
    Por mais que sejam diferentes, sua mãe deve ter muito orgulho de você.

    Um bom texto! Belo sentimento!
    beijo

    João

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  6. Olha uma postagem bem pessoal! Coisa muito comum no começo da ideia de blog a mais de 10 anos atrás! Muito lindo isso! Meu primeiro blog de 7 anos atrás se chamava Ikki 245 e era bem assim! =) Obrigado por visitar o NWB seja sempre bem vinda!

    Abraços!

    http://neowellblog.wordpress.com/

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  7. poxa...lindo! das melhores cronicas em blog que li, mexe com os sentimentos, o fim toca o intimo da alma...parabéns pelo blog, boa sorte

    A Faca de dois (LE)Gumes
    Olá!
    A Faca de dois (LE)Gumes
    Para acessar o texto o link direto é
    http://cemiteriodaspalavrasperdidas.blogspot.com/2009/08/faca-de-dois-legumes.html
    Cemitério das Palavras Perdidas
    http://cemiteriodaspalavrasperdidas.blogspot.com/

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  8. Cai da cadeira agora! Estou de olhos arregalados!!!! Você com clipe da BoA Kwon no seu blog? Que maravilha! Adorei, eu tenho um quadro no NWB que fala de jpop, jrock, kpop, taipop, thaipop... e um dos meus posts foi sobre BoA:

    http://neowellblog.wordpress.com/2009/07/28/best-of-asia-discover-boa-on-music-singer-nwb-x/

    Adorei saber que vc gosta!!! =) Ah, eu moro em república há quase 2 anos e sua postagem sobre mãe me deixou com saudade dos meus pais! Snif snif!!!

    Abraços pra vc!

    http://neowellblog.wordpress.com/

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